Conhecendo um pouco mais as Caçadoras

                  A noite estava fria e as únicas coisas que aqueciam as meninas naquele momento era o calor da fogueira e as histórias que estavam sendo contadas. Lady Ártemis tinha saído para resolver alguns assuntos importantes no Olimpo e pediu para as garotas esperarem no acampamento. Após horas de treino, elas resolveram descansar em torno da fogueira.
                 " O que acham de contarmos histórias?"- Sugeriu Cami. A Tenente estava tentando animar as meninas já que a última missão não teve um resultado tão bom e também tinham novas recrutas.
             
                 "Eu acho uma boa idéia"- Disse Aurora já se levantando para começar, mas se sentou de novo assim que viu o olhar de Cami. Ela percebeu que a Tenente queria que as novatas contassem a sua história antes.
                 " Que tal a Kennis começar?"- Aurora tentava disfarçar enquanto se sentava.
                  Kennis não gostou muito da ideia e lançou um olhar de raiva para Aurora que só sorriu para ela de volta, mas a recruta concordou e começou a contar a sua história.


- Meu nome é Kennis e, como vocês sabem, sou filha de Atena. Meu pai é Embaixador, um diplomata muito famoso no nosso país de origem. Muitos enxergam a pobreza da África, mas só alguns percebem a beleza em cada lâmina de grama e nos animais únicos que temos. Ele viajava muito e estava noivo quando foi para Nairóbi e conheceu minha mãe num Congresso da ONU. Ela se passou pela secretária substituta do Secretário-Geral com a ajuda da Névoa. Acho que o Secretário estava mais preocupado com o Congresso do que com a origem da linda moça de olhos cinza ao invés da morena que sempre organizava a sua agenda.
Meu pai tem o sangue dos antigos guerreiros africanos e se orgulha disso. É um negro dono de um olhar que faz tremer todos os subordinados e muitos iguais, mas não é mau. Pelo contrário, é gentil, bom ouvinte, tem um coração enorme e é extremamente imparcial. Ama o trabalho por poder servir as pessoas e se glorifica mais com os elogios do que com o salário que recebe.
Atena se encantou por aquele homem tão forte, mas ao mesmo tempo tão gentil e carismático e depois de uma troca de flertes, lhe deu um bebê. Na hora acho que ele me considerou um sonho, seu pequeno milagre como ele mesmo gostava de me chamar, por ter nascido de forma tão... peculiar. É claro que Atena lhe explicou que era uma deusa grega donzela e que, assim como havia nascido do intelecto do próprio pai, seus filhos nasciam do dela. E por ser seu pequeno milagre da deusa da sabedoria, ele me batizou Kennis, "Conhecimento" em Africâner.
Era de se esperar que sua noiva tenha surtado por descobrir que ele tinha uma filha que ela não sabia tão próximo do casamento, e ele não podia simplesmente dizer que havia se apaixonado por uma deusa grega virgem e tido uma filha apenas com o poder do pensamento. Eu sabia minha origem, mas nunca tive permissão de dizer para ninguém. A história oficial era que eu sou filha de uma antiga namorada morta durante o parto. Ela não tinha família e ele não sabia que ela estava grávida até poucos dias antes do meu nascimento. Ele iria me dar para adoção, mas quando me olhou se reconheceu e soube que precisava ficar comigo.
Groethel, minha madrasta, me odiava pelo simples fato de eu existir. Eu não podia correr, gritar e nem atrapalhar meu pai. Acho que a maior raiva dela era me ver crescendo e não ter dado nenhum filho a ele. Eu era a princesa da casa e ela não podia questionar a minha posição. Acho que ela rezou tanto para tantos deuses que acabou sendo ouvida e finalmente engravidou quando eu tinha cinco anos.
Meu irmão nasceu pequeno e frágil. Meu pai estava no auge de sua carreira, viajando quase todos os meses e ela não podia acompanhar por causa da saúde debilitada do bebê. Ele começou a viajar sozinho, nos deixando em casa com as babás. Ela ligava todos os dias e passava muito tempo reclamando sobre tudo, mas eu não tinha permissão para falar mais do que duas ou três frases com ele. Ele aceitou um emprego no Consulado americano e nós nos mudamos quando meu irmão tinha pouco mais de um ano.
Eu estava acostumada com a atenção dele, mas Prins era realmente o príncipe da casa, tudo e todos giravam em volta dele. Eu amava observar aquele pequeno ser agir e era ávida para ajudar. Sempre que minha madrasta não estava por perto eu estava. Fui eu que o ensinei a andar de bicicleta, já que papai trabalhava muito e sua mãe não tinha muita paciência.
Meu pai voltou a viajar muito quando Prins completou três anos e eu quase não o via mais. Eu estava começando a perceber coisas estranhas no nosso bairro e no caminho para a escola, mas ninguém mais percebia as mesmas coisas que eu.
Era uma das poucas negras da escola, mas ninguém nunca foi mau para mim. Eu sempre fui tímida e fechada, então nunca soube fazer amigos. Aos onze anos uma menina nova entrou na minha sala. Margareth era filha de um americano com uma espanhola e tinha uma pequena deficiência que a fazia mancar um pouco. Isso a fazia se sentir excluída e ela viu em mim a chance de ter uma amiga na escola nova.
Uma semana depois de conhecê-la sonhei com a minha mãe. Não a tal namorada morta, mas Atena, a deusa da sabedoria. Ela me dizia para tomar cuidado com a escola e mandava eu me afastar da minha única amiga, mas não me explicava o motivo. Quando eu acordei percebi um pequeno pente de cabelo com uma linda coruja no topo e pontas ligeiramente afiadas em cima da minha mesa de cabeceira, e depois de me arrumar para a escola o prendi no cabelo, segurando a franja.

No final da aula Margareth derrubou a mochila aberta no chão e suas coisas se espalharam por metade da sala. O sinal tocou em seguida e por ser sua única amiga ajudei a recolher tudo. Sua maquiagem tinha quebrado e eu me abaixei para tentar salvar o que ainda podia ser utilizado futuramente. Ela podia ter jogado fora e comprado outra, mas o meu pai sempre me disse que desperdícios eram ruins já que nem todos tinham o privilégio do nosso padrão de vida.
Estava de costas quando ela se aproximou de mim e agarrou os meus cabelos, me fazendo arfar de dor. Perguntei o que estava acontecendo e ela me virou bruscamente para encará-la. Ela continuava parecida com a minha única amiga, mas suas pernas estavam estranhas sob a saia do uniforme: uma parecia feita de metal e a outra estava muito peluda, como se pertencesse a um animal.
Perguntei novamente por que ela estava fazendo aquilo comigo e ela disse que não suportava o meu fedor de coruja. Margareth disse que ia me matar só porque eu era uma semideusa e ninguém sentiria minha falta. Lágrimas arderam nos meus olhos e a culpa não era exclusiva de suas garras puxando meus cabelos. Eu tentei conversar, mas ela bateu minha cabeça na parede, o que me deixou tonta e fez meu novo pente de coruja escorregar. Eu o peguei num reflexo e quando ela pulou em cima de mim o levantei e enfiei as pontas seu coração. A Empousai explodiu em cinzas. O pente era feito de Bronze Celestial e foi o único presente que ganhei de Atena. Naquele dia e em vários outros aquele presente tão discreto salvou a minha vida.
Meu pai estava em casa quando cheguei. Eu tentei chamar a sua atenção, mas minha madrasta não saía de perto dele. Precisei esperar o final do jantar para contar sobre o que havia acontecido, mas minha babá voltou para me colocar na cama quando eu contava o final do acontecimento. Ela me ouviu dizer que tinha matado minha única amiga e deixou o livro de contos de fadas que estava segurando cair no chão, nos alertando de sua presença.
Meu pai me mandou para a cama e conversou com a babá. Acredito que ele tentou convencê-la de que tinha ouvido errado, mas ela criou pavor de chegar perto de mim e contou para a minha madrasta. Groethel gritou comigo quando o meu pai não estava em casa, me chamou de assassina e disse que eu era uma maldição na vida dela. Ninguém me defendeu. Prins ouviu tudo e tentou me abraçar quando me viu encolhida, mas ela o puxou e ordenou que ele nunca mais chegasse perto de mim porque eu era perigosa e invejosa. Ele ficou com medo de mim e nunca mais fomos próximos.
Foi nessa época que começaram a aparecer aranhas na minha casa. Elas pareciam me seguir em quase todos os cômodos, mas gostavam do meu quarto. Eu comecei a ter pesadelos com monstros que nem sabia nomear e acordar cheia de picadas. Perdi as contas de quantas vezes implorei para dedetizar a casa, mas ninguém me ouvia. Eu fui rotulada como pré-adolescente com uma imaginação fértil.
Pessoas estranhas me seguiam na rua, mas ninguém mais as viam. As picadas de aranhas sumiam sempre que eu tentava mostrar para alguém e mesmo depois da dedetização elas não foram embora. Meu pai achou que eu estava louca ou queria chamar atenção. Minha madrasta finalmente tinha conseguido, eu era a maldição da casa. Eu comecei a adoecer e não queria sair de casa, chorava muito sempre que precisava sair da biblioteca para fazer qualquer coisa. Os livros eram o meu refúgio e as aranhas não me encontravam ali. Eu me sentia segura naquele cômodo sem mais nenhum ser vivo.
Li todos os livros que o meu pai tinha. Inclusive os de mitologia grega, o que me foi muito útil para reconhecer futuros ataques de monstros. Quando estava com treze anos meu pai foi convidado para ser o Embaixador da África do Sul no Brasil. Nós nos mudamos e eu realmente achei que os problemas tinham ficado nos Estados Unidos. Ledo engano... Morávamos no Jardim Botânico, um bairro nobre do Lago Sul. Eu amava visitar o parque que levava o mesmo nome do nosso bairro de condomínios e sempre que podia estava ali. Fiz todas as trilhas e aprendi a reconhecer todas as árvores, flores e plantas que havia só de observar sua folhagem e sentir seu cheiro.
Minha fama de esquisita da família finalmente impôs respeito e fui deixada em paz. Meu pai trabalhava muito e eu o via pouco. Ele não me chamava mais de maldição, mas também não fazia carinho em mim. Ia a todas as minhas apresentações da escola, mas eu havia perdido o seu coração para sempre. Meu pente de coruja havia virado meu amuleto e sempre estava comigo.
Aos quinze anos eu já tinha matado os eventuais monstros que haviam entrado no meu caminho. Sempre aparecia algum quando estava na Esplanada e todos eles diziam que eu fedia a coruja. Aprendi a reconhecer suas características e formas de aproximação. Sabia que um dia meu pente encontraria um monstro que não seria afetado e eu morreria. Tentei pedir outra arma para o meu pai e ele me olhou como se fosse louca. Minha mãe não respondeu minhas orações e eu não sabia onde conseguir outra arma.
Eu podia ter ficado em casa me lamentando, mas decidi que se um dia eu morresse seria levando o maior número possível de monstros comigo. Eu frequentava os outros parques de Brasília e aos poucos aprendi sozinha como me localizar no meio da vegetação e como me esquivar de eventuais animais.
Um dia estava passeando no Parque da Cidade observando o sol se pôr. Caminhava sem pressa, pensando em como aqueles dois anos tinham me mudado e na nova promoção do meu pai. Ele tinha sido transferido para o Alasca e eu não queria ir. Finalmente tinha me sentido em casa e até tinha alguns poucos amigos. Não entendia porque não podia ficar se ninguém olhava para mim em casa. Não me sentia parte daquela família há anos, mas as aparências eram importantes para a nossa classe social. Como ele ia explicar deixar a filha menor de idade para trás, sozinha?
Quando percebi onde estava notei que já estava escuro e havia saído da trilha. Não localizei nenhuma referência que eu já conhecia e senti que alguém me observava. Puxei meu pente discretamente, desfazendo o coque, e o segurei com firmeza na mão enquanto olhava ao redor. Um movimento nas árvores chamou a minha atenção e eu recuei num gesto despretensioso.
Duas ninfas saíram abraçadas e rindo do meio das árvores e pararam quando me viram. Mesmo paradas elas cambaleavam um pouco e tinham um olhar meio vago, como se estivessem bêbadas. A primeira ninfa me olhou de cima a baixo e perguntou se eu estava perdida e eu confirmei com um sorriso sem graça. Meus conhecimentos me diziam que eram Bacantes e que não podia contraria-las a menos que quisesse lidar com a sua fúria. Meu cérebro é a minha maior arma e minha mente que já é rápida correu veloz, criando uma estratégia para me livrar da melhor forma possível daquelas ninfas.
A segunda ninfa se aproximou de mim e me perguntou para onde eu queria ir e eu puxei o braço antes que ela encostasse em mim, prendendo novamente o cabelo e colocando o pente para baixo, tentando chamar a menor atenção possível para ele. Disse que precisava localizar o Parque de Diversões porque era a saída que usava para ir para casa.
Eu parecia uma mera adolescente perdida e elas se apiedaram de mim. Com cuidado para não tocá-las, pois isso me deixaria com efeito de estar embriagada também, as segui por um caminho novo tentando memorizar suas particularidades. Finalmente avistei ao longe o tobogã do Castelinho e soube que o Nicolândia estava próximo. Elas até tentaram conversar amenidades comigo, mas não paravam de rir e se empurrar. Quando estávamos quase na trilha que segue lateralmente o Parque de Diversões, a primeira que falou comigo comentou que eu tinha cheiro de ave, mas ela não lembrava qual. A segunda riu e perguntou se eu tinha algum pássaro em casa e eu respondi que meu irmãozinho tinha uma calopsita e talvez fosse isso.
A primeira ninfa me olhou séria e insistiu que não, que eu cheirava à ave selvagem, indomável... Olhou atentamente para mim e finalmente percebi o olhar monstruoso que espreitava aquele ser risonho. A segunda parou a poucos metros do Castelinho, fazendo nosso pequeno grupo parar também, e se inclinou na minha direção sentindo meu cheiro. É engraçado, mas nos momentos que precedem a luta eu fico calma e calculo todas as possibilidades de forma distante. O momento que o meu pente não seria suficiente finalmente havia chegado.
Correr não era uma opção. Apesar de saber onde eu estava e ser uma semideusa, dar as costas para um inimigo seria assinar meu atestado de óbito. Fora que despertaria de vez os monstros disfarçados de criaturas da floresta e eu não era páreo para as duas. Eu podia me fingir de burra e correr o risco de esgotar a frágil paciência delas ou podia dizer a verdade.
Eu sorri e disse que o cheiro era de coruja. Elas ficaram chocadas por eu ter me entregado. Eu disse que sabia minha origem, mas Atena não falava comigo há muito tempo. Contei que era considerada esquisita e louca na minha casa e que meu pai queria me afastar dos meus amigos. Meus olhos se encheram de lágrimas não tão falsas assim, porque eu realmente não queria ir embora. Contei que meu pai queria me levar para o outro lado do mundo, para uma terra onde os deuses gregos não tinham jurisdição. Elas se olharam horrorizadas e me deram um longo olhar de pena.
Perguntaram se eu tinha para onde fugir e eu respondi que nunca havia conhecido outro semideus. Elas contaram que corriam boatos que recentemente alguns romanos estavam estabelecendo um novo Acampamento em Brasília, mas elas não sabiam exatamente onde. Eu sabia que os romanos treinavam com a matilha de Lupa, mas a rigidez militar deles nunca me chamou atenção. Fora que minha mãe é uma deusa grega, sua personalidade romana perde as características guerreiras e por isso não via muito sentido em me juntar a eles.
Elas se abraçaram e me olharam com pena e nós voltamos a andar. Quando chegamos à trilha entramos na parte iluminada pelos brinquedos e quando fui me despedir meu pente brilhou. As Bacantes não gostam de armas e elas sibilaram, seus olhos ficando vermelhos e fixos na minha cabeça. Eu olhei para elas e agradeci a ajuda e a companhia, mas elas nem piscaram. Andei calmamente para trás, ainda com os olhos fixos nelas e, acidentalmente, pisei em um galho e me desequilibrei.
A primeira Bacante se assustou com o meu movimento e pulou em cima de mim. Enquanto caía puxei meu pente e tentei acertá-la, mas por estar sem centro de equilíbrio o pente se soltou da minha mão e atravessou a ninfa, se perdendo no escuro. Eu caí sentada ao mesmo tempo em que a Bacante explodia em poeira. A segunda me olhou furiosa e a fama de mil demônios se confirmou pelo rugido que ela deu antes de partir para cima de mim.
Estava caída, desarmada e tinha acabado de liberar a fúria de uma seguidora de Dionísio. Sabia que ia morrer e enquanto minha mente relembrava o rosto do meu pai e irmão com uma saudade dolorida percebia a cena estranhamente em câmera lenta. Triangulei o ângulo do salto da Bacante e soube que suas garras provavelmente arrancariam a minha cabeça pela posição, mas não fechei os olhos. Sabia que esse dia chegaria e pelo menos tinha levado uma comigo. Quando as garras dela estavam a centímetros da minha garganta uma flecha a acertou no ombro, desviando sua posição e fazendo com que ela acertasse meu braço direito, que ardeu muito. Ela ainda tentou entender o que havia acontecido, mas outra flecha acertou sua cabeça. Ela explodiu enquanto gritava.
Olhei para o meu lado esquerdo – a direção que vieram as flechas – e, de cima do Castelinho, vi um vulto escuro pulando a construção e correndo na minha direção. Tentei me levantar, mas meu braço queimava. O vulto se revelou uma garota com longos cabelos castanhos escuros e cacheados e uma faixa com lua na testa. Ela me ajudou a levantar e viu que o meu braço sangrava muito. A dor nublava meus pensamentos e só conseguia dizer "Minha mãe... Meu presente..." Desmaiei não muito tempo depois.
Quando acordei estava deitada numa sala que parecia muito um hospital vagamente familiar. Não sentia mais nenhuma dor no braço e, quando o estiquei para verificar melhor, uma garota branquinha de cabelos castanhos e curtos com franja acima da faixa com lua, que estava perfeitamente camuflada na parede, se mexeu. Parei no meio do movimento e a encarei. Ela acenou com a cabeça num comprimento e saiu do quarto de forma silenciosa, me deixando sozinha. Sentei na cama lentamente, olhando ao redor e me perguntando onde estava. Pouco tempo depois uma garota morena e baixinha entrou no quarto e me olhou. Eu me levantei, mas ela disse que era melhor eu permanecer sentada. Eu me sentei lentamente e perguntei onde estava e quem era ela.
A garota se apresentou como Obiwana, a Subtenente das Caçadoras de Ártemis, e disse que eu estava no Acampamento da Caçada. Agradeci por estar sentada pois sabia o que isso significava. Lady Ártemis é uma deusa donzela assim como Atena e tem dezenas de ajudantes, chamadas de Caçadoras. Já havia lido sobre elas, sabia que Ártemis escolhia pessoalmente suas Caçadoras e tinha quase certeza que estar no Acampamento sem ser uma era ilegal. Tive pena só de imaginar o que havia acontecido com a vigia que me salvara.
A Subtenente perguntou meu nome e se eu estava melhor. Eu respondi que sim, agradeci e me apresentei. Ela pediu que eu a acompanhasse e saiu do quarto. Me levantei rapidamente e a segui. Passamos por algumas meninas treinando animais e outras treinando arco e flecha, inclusive a vigia que me salvara, que sorriu discretamente e deixou seus olhos brilharem travessos para mim quando eu passei. Finalmente percebi que estava dentro da área do Castelinho pelas formas da construção, mas ele parecia diferente, maior e com um brilho prateado.
Entramos numa sala e nos deparamos com outra Caçadora morena, mas de cabelo rosa. Ela me olhou de forma séria e eu sustentei o olhar, me recusando a desviar primeiro. Alguns segundos depois ela sorriu e me parabenizou por não ter corrido de medo. Se apresentou como Cami, a Tenente da Caçada. Disse que uma caçadora observou toda a minha atitude com as Bacantes e viu quando fui atacada, me salvando da morte certa. Eu permaneci calada, esperando as coisas piorarem para mim.
Ela continuou dizendo que as caçadoras não tinham permissão para escolher novas seguidoras sem as ordens diretas da deusa, que estava no Olimpo no momento, mas que eu tinha coragem e inteligência, qualidades muito apreciadas pela caçada. Eu me permiti um pequeno sorriso ao ouvir os elogios, mas voltei à expressão neutra rapidamente. Ela me perguntou se eu já havia ouvido falar sobre as Caçadoras e me fez algumas perguntas pessoais, inclusive se tinha vontade de ingressar na caçada. Respondi tudo de forma sincera e finalizei dizendo que adoraria, já que não me sentia amada em casa e não queria sair de Brasília, além de ser uma ótima oportunidade para honrar a minha mãe, também uma deusa donzela.
O semblante sério das duas caçadoras se desfez e o clima de tensão também. Só então percebi que elas queriam que eu ficasse, mas não podiam me induzir a isso. A Tenente disse que havia conversado com a Obiwana e me concederiam uma permissão especial para ficar enquanto Lady Ártemis não voltava. Eu só poderia me comprometer com a Caçada depois de provar minha validade passando nos testes que a deusa decidisse, mas que não precisava me preocupar pois passaria logo por eles. A fala foi seguida por um sorriso tão caloroso de ambas que senti que tinha encontrado minha família... Uma família que nunca tinha procurado, que nunca tinha imaginado, mas que me salvou e me acolheu no momento que mais precisei. Abri um sorriso e agradeci de forma sincera.
As caçadoras me acompanharam para fora e pararam próximas ao campo de tiro com arco, fazendo sinal para uma caçadora com o cabelo que variava entre o castanho e o ruivo dependendo do reflexo do sol em cima e as pontas rosa. Ela tinha um sorriso simpático e foi logo perguntando se eu tinha melhorado, se apresentando como Aurora e dizendo que havia me curado pessoalmente. Ela brilhava levemente junto com o brilho do sol e senti mais uma vez que fazia parte daquele grupo de meninas.
A coisa que martelava minha mente finalmente gritou quando vi o brilho na pele da menina: estava de dia. O sol brilhava fraco, era talvez o início da manhã. Minha família devia estar preocupada, ter chamado a polícia por não ter voltado para casa. Meu sorriso se transformou em terror. Todas sentiram a mudança abrupta e quando me questionaram sobre o que havia acontecido contei minhas preocupações. Aurora se voluntariou para me levar em casa para buscar as minhas coisas e me despedir dos meus familiares.
Não entendi muito bem como motos se transformaram em cavalos, mas dividi um com Aurora e fomos para minha casa. Uma parte minha tentou me lembrar que minha família não ligava para mim, mas estava tão contagiada pela sensação de pertencimento daquelas meninas que me permiti ter esperanças. Quando cheguei em casa tudo estava silencioso. Eram quase dez horas da manhã e por mais que fosse sábado ninguém mais estava na cama. Entrei com Aurora e disse que estava em casa, mas ninguém olhou para mim. Percebi naquele momento que nem haviam dado minha falta. Não sei por que aquilo não me afetou tanto quando podia, apesar da tristeza que apertou meu coração. Segui para o meu quarto, peguei uma mala e coloquei as minhas coisas preferidas, inclusive alguns livros e roupas. Podia ver pela visão periférica que Aurora estava com uma expressão triste, mas não olhei diretamente para ela. Terminei de arrumar a mala, a peguei, e segui para o escritório do meu pai. Minha madrasta estava na porta, mas quando me viu de malas prontas abriu um enorme sorriso, como se tivesse adivinhado que eu finalmente ia embora. Não falei com ela, passei direto, bati na porta e entrei no escritório.
Meu pai estava sentado trabalhando e levantou a cabeça quando eu bati e entrei no cômodo. Expliquei brevemente o que tinha acontecido e que estava indo embora para sempre. Meu pai me olhou chocado, como se me percebesse pela primeira vez em anos. Groethel disse da porta que aquela era a solução perfeita, já que eles iam para um lugar bem longe e ninguém precisaria saber que eu existia. Mantive meu olhar no do meu pai, mas ele vacilou, como se só então percebesse que não imaginava a vida sem mim. Ele me perguntou se eu tinha certeza de que ia embora e eu fui firme na minha resposta. Ele concordou lentamente e disse que seria uma nova vida para todos já que ninguém saberia de mim no Alasca e eu finalmente poderia ser quem eu era.
Não acho que ele teve a intenção de me magoar, mas suas palavras doeram tanto quanto as garras da Bacante. Me levantei de forma rígida e peguei minha mala. Meu pai me deu um último abraço e eu saí do escritório. Passei pelo meu irmãozinho brincando na varanda e o abracei. Ele não entendeu muito bem e me largou bem rápido quando viu que a mãe o observava. Não me dei ao trabalho de falar com ela. Me despedi das empregadas e disse que ia morar com a minha amiga, apontando para a Aurora, que deu um fraco aceno para elas. Saí da casa e não olhei para trás nenhuma vez durante o percurso. Quando desmontamos e estávamos quase no Acampamento, Aurora segurou o meu braço e me virou para ela. Ela me abraçou apertado, como se eu fosse uma irmã ou uma amiga próxima, e um pouco da minha dor escorreu pelos meus olhos em forma de lágrimas. Ela me prometeu que eu nunca mais passaria por aquilo.

A vida no Acampamento das Caçadoras é cheia, mas deliciosa. Eu faço praticamente tudo com as Caçadoras, apesar do meu posto de recruta, e estava ansiosa para que a deusa que já considerava minha senhora voltasse para que eu pudesse finalmente me tornar uma Caçadora. Infelizmente ela foi sequestrada enquanto tentava resgatar seu irmão e precisamos sair em missão em sua busca. Quando voltou ela estava fria e distante e não consegui a chance de fazer o teste antes de ser mandada novamente em missão para ajudar a resgatar seu colar. Não fiquei frustrada por isso, apesar de talvez ter motivos, pois percebi que já sou uma Caçadora no meu coração e no coração das minhas irmãs de armas, e só a sensação de dever cumprido importa. Decidi que sempre darei o meu melhor e com isso honrarei a minha permanência na Caçada.


                                                        Kennis
~Beijos de Luz da Aurora

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