Olá semideusas e semideuses, aqui é a
subtenente Kennis e hoje vim compartilhar uma história cheia de ação e
aventura, mostrando a vocês o difícil caminho que trouxe a Alexis até nós...
Dizem que é preciso uma vila inteira
para criar uma criança. No meu caso foi verdade.
Meu nome é Alexis e faz 5 horas
que eu não bebo coca cola. Desde sempre minha vida foi diferente.
Sim, eu sei que todos são diferentes, mas minha vida foi bem incomum. Não
nasci em um hospital, mas sim numa tenda. Minha mãe era uma
artista itinerante, então você pode imaginar como foi minha vida. Passei
por várias cidades, exerci várias funções. Aprendi a me virar muito
rápido. Mamãe era uma pessoa incrível, mas não creio que
tivesse muito instinto maternal. Ela era talentosa e bem bonita. O
grupo dela viajava pelo Brasil apresentando peças de teatro e por alguns
anos o grupo se uniu a um circo. Mamãe era um espetáculo.
O que eu posso falar do meu pai? Eu não
o conhecia. Minha mãe me disse uma vez que ele era grego. E que ele tinha
escolhido meu nome. Eram todas as informações que eu tinha. Ele
sequer me registrou, o que me deixou muito brava em um período da minha
vida. Se eu não tinha um pai, queria pelo menos a cidadania grega
para eu ir embora pra Europa estudar história da arte. Bem, eu conto isso
depois.
Minha infância foi bem
alegre. Viajei várias cidades, conheci várias pessoas. Quando eu
tinha três anos, uma irmã da minha mãe se separou do marido e passou um
tempo conosco. Ela era bem boazinha comigo. Na época passávamos por uma
cidade grande. Minha tia contava histórias de fadas e feiticeiras. Eu
me amarrava, passava as tardes brincando de fazer poção mágica e
gritando feitiços por aí. Não que funcionasse, mas todos achavam muito
bonitinho o modo como eu colhia as plantas, separava as partes, picava com
os dedos e misturava. E distribuía para todos por perto. Eu era uma
criança, então os adultos fingiam beber e estava tudo certo. Era minha
brincadeira favorita no mundo, consigo lembrar até do cheiro que minhas mãos
ficavam.
Essa tia ficou com a gente por um
tempo, mas não estava acostumada com a estrada. Logo, ficou muito
doente. Eu não lembro bem, mas me disseram que vários médicos foram
consultados e nenhum diagnóstico definitivo. A cada dia ela ficava mais
debilitada, cada vez mais triste também. Até que uma noite eu estava
brincando atrás da nossa tenda e ouvi um casal que
trabalhava na confecção de figurino saindo de onde minha tia estava
acamada. Eu acho que eles não me viram. Os dois estavam
conversando, dizendo que era uma pena uma mulher tão bonita e
inteligente ficar daquela forma. Eles acreditavam que ela estava
doente de tão infeliz que se sentia, e que eles queriam ter uma solução
mágica pra tirar ela daquela situação. Eu lembro ter pensado que,
poxa, eu fazia poções mágicas e sabia vários feitiços. Então eu corri,
peguei uma tigela, coloquei água. Depois fui procurar os
ingredientes. Lembro-me de colocar uma florzinha vermelha com o gosto meio
azedinho, Alecrim (eu sabia o que era, pois mamãe usava nos assados),
e sementes de uma frutinha. Amassei bem, coloquei na água e fiz uma
pequena prece ao universo. Por favor, que minha tia ficasse mais
feliz. Fui até a cama da minha tia, com cuidado pra não derramar a poção.
E dei pra ela beber.
Hoje em dia eu penso, qual o motivo
dela ter bebido? Será que sentia tanta dor que estava alucinando ou será que
ela queria acabar com o sofrimento logo? Afinal, quem beberia algo
que uma criança pequena preparou com umas plantinhas que encontrou por ai?
O fato é que entreguei, ela bebeu. E disse com uma voz gentil:
- Querida, estou com muito sono. Volte pra perto da
sua mãe, tá? Amanhã nos vemos.
Então dei um beijo de boa noite na
minha tia e fui pra minha cama. No dia seguinte, minha tia levantou da
cama, algo que ela não fez por vários dias. Riu, contou piadas, até ajudou
em algumas tarefas. Lembro que ela ainda sentia dor, mas estava feliz por
ajudar. E durante a semana, ela pareceu tão leve. Tão animada. As pessoas
pararam de cochichar como se algo bem ruim estivesse acontecendo e
voltaram às suas vidas normais. O clima melhorou entre todos. Alguns dias
depois, teve uma festa na cidade em que nós estávamos. Acho que era para a
padroeira da cidade. Tinha barraquinhas, teatro, danças, conseguimos
muito serviço. Lembro-me de estar brincando com fitas coloridas com as
outras crianças e minha tia ter me chamado. Estava tarde, era melhor ir dormir.
Ela ficaria comigo. Lembro que ela dormiu primeiro e quando minha mãe
chegou, fui deitar com ela. Minha tia nunca mais acordou. No final, ela
tinha um problema maior que a tristeza.
Eu continuei crescendo. Era uma criança
muito curiosa. Lembro que um dos mágicos da trupe me viu olhando o
rótulo de uma caixa e perguntou se eu sabia ler. Eu não sabia. Ele tentou
me ensinar. Foi um pouco difícil, já que ele queria que eu ficasse sentada
o tempo todo, e eu confundia algumas letras. Eu me lembro de ter ficado
muito frustrada por não conseguir algo aparentemente simples. Até que
a irmã do mágico, uma moça que lia o futuro nas mãos das
pessoas, decidiu ela mesma me ensinar. Deu muito certo. Ela me levava pra
fora, longe das tendas e trailers, e ia me ensinando devagar. Conforme o
que eu via no mundo. E o mais importante, no meu ritmo. Eu aprendi um
pouco tarde, se comparar com as outras crianças. Mas também aprendi que não tem
problema errar. Se eu não entender, poderia ler de novo. Eu
gostava muito dela, até que passamos por uma cidade e ela se apaixonou.
Desistiu da carreira, do irmão, dos amigos e ficou com o amor.
Espero que ela ainda seja feliz.
Quando era mais velha, uns 8
anos, nós conhecemos o Seu Carlos. Ele era um senhorzinho já, mas
dava uma bela ajuda pra montar e desmontar as coisas. Um dia, ele me
mostrou um livro e perguntou se eu sabia ler. Disse pra ele o que estava
escrito e ele me elogiou. Eu achava aquelas letras esquisitas, mas consegui
entender. Fiquei um tempo achando que todos os idiomas eram iguais, só
mudavam as letras. Bem coisa de criança, mesmo. Aquilo era grego. Como ele
só ajudava a montar e a desmontar, tinha bastante tempo livre. E eu, criança,
mais tempo livre ainda. Ele resolveu que me ensinaria o que pudesse. Dizia
que eu poderia ser uma grande atriz, e que quanto mais eu aprendesse,
melhor. A primeira coisa que ele me ensinou foi lutar. Com
espada, bastão e desarmada. Ele dizia que para as cenas ficarem
verdadeiras, eu precisava de prática. E como a gente praticava! Eu
costumava dormir cedo de tanto cansaço. Minha mãe gostava que eu estivesse
focando minhas energias em algo, e não pipocando por todo lado como
costumava ficar. Pensando bem, para um senhorzinho ele até que era bem
ágil. Depois de um tempo, ele dividiu as aulas. De manhã, lutas. De
tarde, história. Depois, mais luta. Ele me ensinou muita coisa,
principalmente as histórias gregas. Eu gostava de aprender, mamãe já tinha
me dito que meu pai era grego. Sentia que fazia parte de mim aquelas
coisas. Ele me ensinou também história mundial e arte, principalmente
teatro. Estudei outras áreas do conhecimento, como idiomas e matemática. Mas
minha paixão mesmo era a arte. Os anos foram passando e eu fui
entendendo melhor o mundo fora da companhia de teatro.
Aos 14 anos eu já o vencia quando
lutávamos (bem, algumas vezes. Ele pegava pesado). Eu já não queria continuar
ali, na companhia, mas queria conhecer o mundo. Cursar história da arte,
viajar para o velho continente, ver as coisas com meus próprios
olhos. Eu tinha um plano. Quando tivesse idade o suficiente,
confrontaria minha mãe a respeito do meu pai. Eu havia juntado algum
dinheiro (tudo que eu consegui colocar as mãos) e iria atrás dele. Queria minha
cidadania grega para estudar no exterior. Para ter contato com aquilo
que eu amava. Algo dentro de mim gritava por isso. Foi quando aconteceu o pior.
Estávamos indo para a estrada. Era
madrugada. Dividimos as coisas entre os carros, como sempre. Estava
tudo encaminhado, já tínhamos dado partida na caminhonete,
quando Seu Carlos saiu do carro que estava e veio gritando na nossa
direção. Minha mãe, que estava dirigindo, desligou o carro e Seu Carlos falou:
- Eu preciso vir aqui, no lugar da Alexis.
- Mas qual o problema? – perguntou minha mãe.
- Eu estou me sentindo enjoado e preciso ir ao
banco de carona. Alexis pode ir lá ao banco traseiro do carro que eu
estava.
Minha mãe achou estranho? Sim, eu
também. Mas consentimos. Troquei de carro e deixei Seu Carlos ir ao meu
lugar. Partimos. Duas horas depois de viagem, passávamos por vários morros
em Minas Gerais. Já tinha amanhecido, mas a região que estávamos passando
tinha muita neblina. Eu estava sonolenta ainda, quando eu ouvi o
barulho. Foi ensurdecedor. Então eu vi uns vultos vindo na nossa direção.
O motorista do carro, um dos atores, parou no acostamento e ligou o pisca
alerta. Me mandou sair do carro, procurar uns galhos e colocar bem atrás na
estrada, pra não ocorrer um acidente enquanto estávamos parados. Eu e
outra garota fomos enquanto ele e os outros passageiros iam ver o que
tinha acontecido. Enquanto voltava, vi os outros carros da companhia
parando no acostamento. Estávamos pegando galhos com folhas quando ouvimos
um grito. Deixei a coitada da menina sozinha e saí correndo, tinha acabado
de lembrar que não tinha visto a caminhonete da minha mãe passando. Passei
todos os carros estacionados e corri mais um bocado. Até chegar numa curva
da estrada, perto de uma ponte.
A névoa estava bem densa, mas eu vi os
contornos de uma árvore gigante. E algo abaixo dela. Corri mais e fui
percebendo o que tinha acontecido. Havia uma caminhonete espremida contra a
árvore. De repente, enquanto eu corria, senti alguém me puxando pra trás
pela cintura. Um dos malabaristas tinha me segurado. Tentei me livrar
dele, mas ele era mais forte que eu. Minha visão estava embaçada, eu
gritava e esperneava. Já sabia o que tinha acontecido. Era a caminhonete
da minha mãe. Minha mãezinha estava contra aquela árvore. Eu só conseguia
ver o laranja da caminhonete, alguns vultos. Lembro que alguém tentou me
acalmar. Talvez eu tenha dado um soco em alguém, não consigo lembrar.
Quando tento, só recordo de uma brisa passando e algumas flores amarelas
caindo.
Minha próxima memória é de estar em um
hospital. Havia crucifixos na parede. Era uma casa de
misericórdia. Estava sozinha em uma daquelas cadeiras de plástico. O
corredor vazio. Eu ouvia alguns barulhos. Passos, vozes baixas, aparelhos
apitando. A companhia chamou os bombeiros, ambulância, tudo o que
conseguiram. Fomos todos para a cidade mais próxima. Minha mãe estava
em cirurgia e Seu Carlos na UTI. Acredito que fazia uns dois dias
que eu não dormia. Eu perdi completamente a noção do tempo enquanto via as
enfermeiras andando pra lá e pra cá. Minha mãe podia não ter instinto
maternal, mas era uma mulher maravilhosa. Seria possível viver sem
ela? Ela era quem eu tinha na vida. Meu pai, eu sequer sabia o nome.
Também tinha uma tia que morava em Goiânia, mas eu nunca tinha
visto. Foi quando uma enfermeira veio na minha direção.
- O senhor que estava com vocês acordou – ela disse
– ele está te chamando.
Sem entender direito, cambaleei até o
leito dele, na UTI. Lembrei que eu também estava sem comer fazia um
tempo. Cheguei perto da cama. Seu Carlos estava pálido, vários aparelhos
estavam conectados nele, e ele estava coberto com uma manta clara.
- Alexis – ele disse com uma voz fraca tirando
o aparelho respiratório – tem muita coisa que não te contei.
- Tudo bem – respondi – ainda teremos
tempo. Ele deu uma risada rouca e falou:
- Não temos. Escuta, tudo é real. Todas as
histórias que contei – ele tossiu – você precisa ir
pra Brasília. Vai encontrar seu pai.
- Meu pai? – eu já não sabia se ele quem estava
delirando ou era eu – Como o senhor sabe do meu pai?
Encostei na cama. Eu estava meio tonta
já. Pisquei forte pra ver se melhorava. Acabei puxando sem querer o
cobertor que estava no Seu Carlos. Achei que tinham colocado um
cobertor de pelúcia nele. Ou uma coberta de pele de animal. Devo ter feito uma
cara estranha, pois Seu Carlos riu e disse:
- Olha de novo. Realmente olhe.
Eu olhei e não tinha cobertor algum. As
pernas dele eram cobertas de pelos, como... como... um bode. Eu
balancei a cabeça. Só podia estar delirando. Sentei na cadeira que tinha
perto do leito, onde estava o casaco e a mochila de Seu Carlos.
- Você precisa entender que é tudo
real. Leve meu casaco e minha mochila. Foi um prazer...
Nesse momento, os aparelhos começaram a
apitar como doidos. Vesti o casaco, peguei a mochila e saí correndo
enquanto várias pessoas de branco entravam. Eu estava
confusa, triste, sonolenta e com muito medo de perder Seu Carlos. Pedindo
ao universo que ele e mamãe sobrevivessem, decidi comer algo. Fui até a
cafeteria. Talvez se eu me alimentasse, aquela confusão que estava na minha
cabeça melhoraria. Enquanto comia, pensava. Será que meu pai morava em
Brasília? Será que minha tia sabia quem ele era? Pelo menos o nome dela eu
sabia, sabia que morava em Goiânia, sabia o bairro. É bem perto de
Brasília...
Resolvi olhar dentro da mochila de Seu
Carlos e colocar o que fosse útil na minha. Tirei algumas latas vazias,
uns pedaços de plástico. Algum dinheiro, umas moedas grandes, douradas e
prateadas. Pareciam ser os dracmas que ele colecionava, já tinha visto
algumas vezes. No bolso maior estava um punhal, na bainha. Achei
que não faria mal guardar aquilo, mas fiquei com medo de furar minha
mochila. Prendi a bainha no meu cinto e continuei fuçando. Umas roupas,
uma blusa laranja esquisita. Um radinho. Deixei as roupas, as latas e
os plásticos. Guardei o dinheiro na minha própria mochila. Deixei o radinho,
tecnologia não costumava funcionar comigo, mesmo...
Já era noite quando uma médica veio
falar comigo. Minha mãe não estava mais em cirurgia, infelizmente, houve
complicações. Eu estava sozinha, afinal. Senti um vazio
enorme. Não era possível que mamãe simplesmente não existisse
mais. Sentei na cadeira que eu estava, na cafeteria, e
chorei muito. Algumas pessoas da companhia ficaram, caso precisasse,
mas o resto seguiu viagem. Perguntei pro pessoal sobre o Seu Carlos. Ele
havia sumido. Os médicos o atenderam, ficou tudo estabilizado, o deixaram
descansando. Quando voltaram, não havia ninguém no quarto. Ninguém o viu
saindo, também. Me pergunto até hoje o que aconteceu. Lembro que
o pessoal da companhia me perguntou o que eu faria. Se iria com eles
ou se tinha outro plano. O Conselho tutelar me mandaria pra casa da minha
tia, caso eles notificassem. Eu não conseguia sequer pensar em continuar
com eles. Como eu trabalharia na companhia se aquilo era a vida da minha
mãe? Eu não suportaria sem ela. Falei que iria pra Goiânia, pra casa da
minha tia. Quiseram me dar um celular, mas eu recusei. O plano agora
era morar com minha tia, economizar mais dinheiro, achar meu pai, e
finalmente estudar história da arte na Grécia. Difícil? Quase impossível.
Mas eu tinha esperança. Era a única coisa que tinha me sobrado.
Me deram carona até a rodoviária da
cidade e comprei minha passagem. Um ônibus sairia em duas horas pra
Goiânia. Sentei em um banco, abracei minha mochila e
esperei. Cochilei um pouco, comi algo. Deu o
horário. Entrei no ônibus. A poltrona ao lado da minha estava
vazia, mas na outra fileira estava uma moça ruiva muito bonita. Ela ficou me
encarando até eu sentar, quando desviou o olhar. Achei estranho? Achei.
Fiquei com medo? Com certeza. Pela primeira vez na vida eu estava sozinha. Por
minha conta. Abracei minha mochila e olhei pra fora, vigiando o reflexo da
moça. Estava bastante escuro lá fora. Eu estava bem cansada, mas com medo
demais pra conseguir dormir.
Acontece que eu dormi. Acordei com
alguém perto de mim. Abri os olhos e a moça ruiva estava do meu lado,
quase em cima de mim, me cheirando. Sim, você não leu errado. Dei um grito e empurrei-a. Ela
riu de uma forma esquisita e pediu desculpas. Levantou e sentou na
fileira dela. Fiquei olhando desconfiada e, alguns minutos depois quando o
ônibus fez a primeira parada, saí correndo pra fora do ônibus. O dia já
tinha amanhecido e o Sol brilhava com força. Segui os outros viajantes até a
loja de conveniência. Sempre olhando para ver se a maluca estava
perto de mim. Comprei dois salgados, duas latinhas de coca cola e guardei
na mochila. Peguei também umas balinhas de uva. Olhei no relógio acima da
porta e vi que ainda tínhamos meia hora antes do ônibus pegar
estrada. Decidi que preferia usar o banheiro da lanchonete ao do
ônibus. Usei uma das cabines, que até que era bem limpinha, e saí pra
lavar as mãos. Quando olhei pelo espelho, atrás de mim estava a moça
ruiva. Ela olhava fixamente pra mim e não piscava.
- O que uma filhotinha como você está fazendo
sozinha? Perdeu sua babá? – Ela disse.
- Me-meus pais estão lá fora me esperando – disse
de uma forma nada convincente.
Ela sabia que não era verdade e partiu
pra cima de mim mancando. Foi quando eu vi. O cabelo dela não era cor de fogo.
Era fogo. E a pele dela era meio verde. E da boca dela saiam presas. Ela
definitivamente não era normal.
Dei um grito e desvencilhei dela.
Percebi que minha mochila estava do outro lado do banheiro, perto da porta. E
que ela estava impedindo a passagem. Ela veio pra cima de mim de novo e eu
entrei na cabine do canto. Ela ficou tentando passar por baixo e me alcançar.
Subi em cima do vaso e me pendurei na divisória entre essa e a outra
cabine. Dei um impulso e passei para o outro lado, mas quando desci ela
estava lá pronta pra me atacar. Tentei fechar a porta, mas ela impediu e
avançou. Lembrei-me do punhal que estava preso ao meu cinto. Puxei, estava
difícil de sair, quando consegui tirar, meti no pescoço dela. Foi quando eu
olhei e vi que aquilo era bem maior que um punhal. Era uma espada
curta. Ela sibilou pelo ferimento e soltou um grito. Empurrei a espada
contra ela, mas ela desviou. Avancei, alternando estocadas e golpes
laterais. Atingi a barriga dela. Ela soltou um grito ensurdecedor, mas eu
não estava mais olhando. Tinha pegado minha mochila e corrido o mais
rápido que podia para fora da lanchonete.
Eu estava tão confusa. O que era
aquilo? Eu matei aquela coisa? Se eu tiver matado uma pessoa, a Polícia
vai me procurar? Eu não quero ser presa. Se eu não tiver matado aquela
mulher, ela vai voltar pro mesmo ônibus que o meu. Pensando isso, tomei a
decisão. Corri até o ônibus mais próximo que estava dando partida e entrei.
Sentei no fundo e tentei controlar minha respiração torcendo pra não ser
presa. Então eu vi que ainda segurava a espada. Peguei a bainha, agora
pequena demais, e olhei. Bem, estava guardada aí antes. E, descrente
do que poderia acontecer, guardei a espada na bainha. Coube como uma luva.
Depois de algumas horas de estrada, eu
consegui ficar mais tranquila sem ficar olhando o tempo todo pra trás pela
janela do ônibus tentando ver se algo estava me perseguindo. Comecei a
pensar, o que poderia ser aquilo? Seria um tipo de demônio? E então vieram
na minha cabeça as lições que eu tive com Seu Carlos desde criança. Cabelo
de fogo, presas, pele esverdeada. E ela mancava, eu tenho certeza. Será que o
vestido longo florido que ela usava servia pra tampar alguma coisa esquisita,
tipo uma perna de bronze? Nossa, já sei o que era, mas será possível que
fosse uma...
- Empousai – falei em voz alta. Só então percebi
que havia um homem uniformizado parado em pé ao meu lado olhando pra
mim como se esperasse uma resposta.
- Senhorita, o bilhete. – ele
repetiu entediado.
Eu não poderia mostrar meu bilhete para
ele. O ônibus que eu deveria estar era outro, com Goiânia como destino. Aquele
ônibus ia para sei lá aonde. A única solução que eu pude encontrar para
não ser expulsa no meio da estrada seria mentir e esperar
que ele acreditasse. Crianças, não façam isso, é bem
feio. Tremendo de medo, falei:
- O senhor já olhou meu bilhete. Agora guardei.
- Olhei? – respondeu ele - Não me
lembro. Mostre de novo.
- Está guardado, tão fundo na mochila!
– enfiei a mão dentro e comecei a revirar – Mas o senhor lembra? Eu estava
aqui antes do ônibus parar para o almoço. Só que estava dormindo.
Percebi que ele estava forçando a
memória. Continuei fingindo que estava procurando o bilhete, torcendo para ele
acreditar que eu dizia ser quem era. Uma passageira antiga. Depois de
alguns segundos, ele respirou fundo e falou:
- Verdade. Acho que me lembro sim de você aqui –
apontou para uma poltrona que estava cheia de malas.
- Sim, era onde eu estava – sorri.
- Muito bem então, boa viagem.
Agradeci. E então me lembrei de que não
sabia para onde aquele ônibus iria, mas achei que perguntar desfaria meu
disfarce. Decidi esperar e ver aonde chegaria. O lado bom é que eu já
tinha comido um dos salgados, mas havia deixado o outro. Seria meu lanche,
caso o ônibus não parasse.
Como o previsto, o ônibus parou para o
jantar. Quando desci, descobri que ele estava numa rodoviária. Ia
continuar caminho para Palmas. Olhei ao redor procurando uma placa do
local que eu estava. Encontrei um mapa. Respirei fundo, surpresa. Afinal,
eu havia chegado a Brasília. A rodoviária era ampla, com minha
mochila nas costas e o punhal no cinto, comecei a andar. Tinham lojinhas
de presentes, alguns restaurantes. Eu não podia ficar gastando dinheiro assim,
ainda não sabia para onde iria. Procurei os guichês das empresas de ônibus
e me informaram que pra ir pra Goiânia eu teria que ir pra rodoviária de outra
cidade. Algo como Tabatinga. Eu poderia ir de metrô do lado de
fora da rodoviária. Sentei num banco cinza e olhei ao redor. Era mesmo
tudo meio cinza. De repente me lembrei do Seu Carlos. Ele disse algo sobre
meu pai morar em Brasília. Será que se eu soubesse o número dele, ele
viria me buscar? De uma risada meio amarga. Eu sequer sabia o nome
dele. Eu também não tinha telefone. Tecnologia realmente não gostava de
mim.
Estava imersa em pensamentos, tentando
criar coragem para continuar a jornada quando eu ouvi uma risadinha.
Olhei para trás e levei um susto. A mulher ruiva vinha mancando na minha
direção, com o mesmo vestido florido. Ela era realmente feia com aqueles dentes
pra fora e os cabelos de fogo. A minha primeira reação? Bem, eu corri
muito. O lado ruim é que mesmo mancando, ela também sabia correr. Eu não sabia
para onde ir. Se fosse pra pista e aonde tinham carros e luzes, ela me
encontraria. Ou a Polícia, por ter tentado matar aquela doida anteriormente,
sei lá. Decidi ir para o mato. Tinha uma placa dizendo ser propriedade privada
de alguma força armada. Mas pensei que seria mais difícil daquela maluca me
achar. Empousai. Lembrei o nome. Corri até chegar num descampado, mas ela
me encontrou facilmente. Eu estava muito cansada, mas algo corria pelas
minhas veias e me dava energia. Adrenalina, talvez.
Estava perto de uma árvore bem grande.
A empousai olhou pra árvore e fez um barulho estranho. Meio que rosnou. Olhei
pra árvore e tinha um tipo de tecido pendurado. Algo felpudo. Será que
algum mendigo doido morava aqui e pendurava suas roupas pra
secar na árvore? Okay, isso não é importante. Tirei o punhal da
bainha e me preparei. Pés separados, como Seu Carlos tinha me ensinado. Joelhos
flexionados. Esperei ela atacar, coisa que certamente ela fez. Dessa vez
eu estava mais preparada, desviei para o lado e golpeei com a espada. Ela
desvencilhou e partiu pra cima de mim novamente. Ataquei com a espada, ela
desviou e me empurrou com um dos pés. Percebi que era um casco. Cambaleei
um pouco, mudei o peso pra outra perna, recuperei o equilíbrio. Dei uma
estocada. E outra. E outra. Ela desviava indo pra trás e tentava agarrar
minha cabeça. Me abaixei e golpeei as pernas dela lateralmente. Ela gritou. Meti
a espada aonde eu achava que ficava o joelho dela e ela caiu, ainda
tentando me ferir com as garras. Desviei e cravei a espada no tronco dela.
Ela começou a se desfazer.
Cansada, com a adrenalina deixando meu
corpo, comecei a andar para trás até encostar na árvore. Quando, do nada,
apareceu um menino com uma blusa laranja horrível, segurou no meu braço e me
arrastou com ele. Quando passamos por uma espécie de portal, que eu não
tinha visto anteriormente, era como se um mundo inteiro escondido
aparecesse para mim. Havia inúmeras casinhas mais pra baixo do morro. Ao
longe dava pra ver um lago brilhando a luz da lua. O menino foi me levando
pra dentro e eu pude ver várias pessoas com a mesma blusa laranja sentadas
em várias mesas de madeira, comendo. O cheiro parecia delicioso. Lembrei que eu
não tinha jantado. Quando eu olhei para frente, o menino havia parado
e estava falando com um homem montado num cavalo. Não, espera, o homem era
o cavalo.
- Boa noite, meu nome é Quíron. Eu sou o
responsável pelo acampamento. – Confesso que não estava prestando atenção
nele, com exceção das pernas de cavalo. – Oi? Pode olhar aqui pra cima?
Pro meu rosto?
- Desculpa – falei, finalmente olhando para o rosto
dele – é que... é que... – coloquei a mão em uma das
pernas. Quíron se assustou e andou um pouco pra trás.
- Opa, opa, cuidado aí.
- Você é peludo – eu falei bem inteligentemente.
- Você deve estar em choque – ele disse como se
entendesse – venha comigo, vou te explicar tudo.
Quíron andou até um casarão. Eu o segui como
se estivesse sonhando. Quando olhei, ele tinha sentado em uma cadeira de
rodas. Pisquei, meio sem entender.
- Acredito que assim fique mais fácil pra você –
ele começou – qual é seu nome?
- Alexis.
- Alexis, você é uma semideusa. Seu pai ou sua
mãe é um deus. Como você nos encontrou, acredito que grego.
- Minha mãe está morta – falei devagar enquanto
assentia com a cabeça.
- Sinto muito - ele respondeu – como
você chegou até aqui?
- Eu vim de ônibus – claramente não sou filha
de Atena.
- Sim, faz sentido – não fazia – Alexis, todos
os mitos são reais. Fernando, o menino que te encontrou do lado de fora do
acampamento, disse que você matou uma empousai. Aonde você
encontrou está espada?
Eu ainda estava carregando a espada,
sequer tinha pensado em guardar. Foi quando deu um clique na minha mente.
- Espera, o Seu Carlos também era peludo. Mais ou
menos como você, mas ele tinha apenas duas pernas. Você tem quatro. Céus,
como você guarda tudo nessa cadeira? Será que você conhece o Seu Carlos? Sabe
dizer o que aconteceu com ele?
- Eu não sei quem é Carlos, ele era um sátiro?
- Provavelmente, eu não sei. Ele me deu essa
espada, na verdade ela é um punhal – eu falava tão rápido, era como se tudo o
que não falei nos últimos dias estivesse saindo de uma vez – ele
disse pra eu ficar com a mochila dele. E esse casaco também era dele. Como você
não sabe se tem um sátiro perdido, ou morto? Vocês não tem uma central dos
sátiros, não? Um radar peludo...
Quíron levantou uma das mãos,
pedindo silêncio. Ele riu e disse que era possível que Seu Carlos tivesse outro
nome. Mas ele não via muito sentido em tanta demora pra me trazer ao
acampamento. Se bem que ele ainda não sabia quem seria meu parente olimpiano.
Depois, me explicou mais ou menos como funcionava o acampamento. Chamou um menino
e disse que eu ia ficar com eles, até meu pai olimpiano se manifestar.
- Eu sou Léo, filho de
Hermes – ele disse – por enquanto, você pode ficar com a gente. Se
quiser, pode deixar sua mochila e sua, hã, espada lá no nosso chalé.
- Beleza – respondi, enquanto guardava a
espada na bainha – Hermes é aquele deus das asinhas no pé? Deus dos
viajantes... – ele acenou com a cabeça – dos ladrões? Hum, vou ficar com
minha mochila aqui, obrigada.
Léo me levou para uma das mesas, a mais
cheia. Depois do jantar, todos foram ficar ao redor da fogueira. Foi quando
percebi que estava todo mundo olhando para mim, mais precisamente acima da
minha cabeça. Quando eu olhei, o brilho já estava desaparecendo. Foi quando um
rapaz alto chegou pra mim e falou animado:
- Então você é filha de Dionísio... eu também!
Não entendi muito bem o motivo de tanta
animação, mas deixei que ele me levasse ao chalé número 12. Era um chalé
normal, se você desconsiderasse a cor roxa das paredes, as folhas de parreira e
todas as latinhas de coca cola pelo chão.
- A gente tem um sistema de som maneiro aqui,
e ali em cima fica o novo jogo de luz – disse meu novo irmão, todo
animado. Animação, na verdade, parecia não faltar nele – Meu
nome é Arius, acho que não falei. Qual o seu?
- Alexis.
- O pai também escolheu seu nome? Legal! - Ele
era realmente animado – A gente tem outro irmão, mas ele não está no
acampamento.
Deixei Arius falar sobre o
que quer que seja que ele queria, continuei acenando com a cabeça. Tudo o que
eu queria era descansar. Os últimos dias foram bem difíceis pra mim. Assim que
meu irmão fez uma pausa pra respirar, dei um longo bocejo. Arius me
mostrou qual cama eu ficaria e me deu uma máscara de dormir, daquelas que não
deixam passar a luz. E também deu um protetor de ouvidos. Aparentemente a festa
no chalé 12 não acabava nunca.
No dia seguinte, acordei e fui tomar
café da manhã. Dei uma porção na fogueira para meu pai, apesar de estar
bem revoltada e não querer dar nada para ele. Meu irmão disse que também
tinha sido treinado por um sátiro antes de chegar ao
acampamento. Pelo que eu vi, Dionísio era muito rigoroso com os
próprios filhos, exigindo mais deles do que dos outros campistas. Isso
explicava o porquê de quando um sátiro achava uma criança dele, passava algum
tempo a treinando. Havia tido alguns pesadelos durante a noite e, quando
acordei, alguns deles eram verdade. Estava sentada na mesa do meu
chalé lembrando do que havia sonhado quando eu vi um homem vestindo a
roupa mais ridícula que eu já tinha visto – e eu cresci perto de palhaços.
- Olha lá, Alexis – disse Arius –
aquele ali é nosso pai.
Na mesma hora, meu sangue ferveu.
Levantei e, antes que meu irmão pudesse esboçar alguma reação, eu já estava
pisando duro em direção ao meu pai.
- Oi, com licença - disse tentando chamar
atenção dele – lembra de mim? Acho que não. Sou sua filha!
Dionísio olhou pra mim, devagar, e
disse:
- Ah, oi! Você é a...?
- Alexis – quase gritei – que bom te encontrar
por aí! Tem algumas coisas que eu gostaria de dizer – eu estava falando muito
rápido - ter um filho por aí e desaparecer NÃO É LEGAL!
Sim, eu estava gritando.
- Hum – ele falou calmamente enquanto dava um
gole de coca cola – onde está sua mãe?
- Minha mãe? MINHA MÃE? Minha mãe está morta! E tudo que eu tenho
agora é um pai que não tem o menor senso de moda, e pior ainda, QUE EU NUNCA
CONHECI!
Talvez eu tenha visto um brilho nos
olhos dele quando disse aquilo, mas logo desapareceu. Dando outro gole na
latinha que estava segurando, Dionísio falou:
- Beleza, mocinha, a gente conversa
depois.
- Depois? Depois de quanto tempo? Vou ter que
esperar mais 14 anos pra poder voltar a GRITAR e mesmo assim VOCÊ NÃO ME OUVIR?
Não senhor, você não sabe o que eu passei pra estar aqui. Fui perseguida por
uma demônia maluca por TRÊS ESTADOS DO BRASIL! Sabe o que é isso? Eu vivi a
minha vida inteira sem sequer saber seu nome! Você podia ter mandado um sinal
que estava lá, umas uvinhas, uma planta! Mas não...
- Queridinha – Dionísio falou com
uma voz perigosa - você acha que eu não sei o que você passou? Você acha que eu
não acompanho todos os meus filhos de longe – talvez eu tivesse tirado ele do
sério um pouquinho, o rosto dele estava ficando vermelho - você não acha que eu
os amo? Acontece que eu sou um deus por merecimento. Criei algo maravilhoso e
isso resultou em um lugar ao lado do meu pai. Você quer um lugar ao lado do seu
pai, FAÇA ALGO!
Sim, ele gritou também. Acho que o
drama é mesmo de família. Eu poderia ter parado por aí, mas não parei. Eu podia
finalmente falar tudo o que eu sempre quis para meu pai. Claro que tinha a
possibilidade de ele me transformar em algo, sei lá, tipo um pé de morango. Mas
eu sequer pensei na hora.
- Você quer que eu faça algo? VOCÊ sumiu da
minha vida, VOCÊ sabia que eu existia e agora quer que EU faça algo pra receber
a SUA atenção? É RUIM, HEIN?
- EI – ele brigou – O REVOLTADO NESSA FAMÍLIA
SOU EU!
- ISSO É UM DESAFIO, PAPAI?
Saí de perto com muita raiva enquanto
ele gritava atrás de mim que era para eu ir para o meu quarto de castigo. Como
se eu já não estivesse indo para lá de qualquer forma. Ele queria que
eu fizesse algo. Mas como eu faria? Me disseram que os campistas só saiam
do acampamento para ir visitar a família - coisa que eu não tinha – ou depois
de profecias. E tudo de bom no mundo já havia sido inventado. Tipo a
pizza. Como eu competiria com Pizza? A não ser que... se meu pai
queria que eu fizesse algo, eu certamente ia fazer. Não que ele fosse ficar
muito orgulhoso, mas... hoje eu consigo ver que só queria ser notada pelo
meu pai. Bom, eu fiz algo muito estúpido.
O dia passou, participei das
atividades matutinas, almocei, mais atividades... ah, eu me esqueci de
comentar. Meu pai é o deus do vinho, festas, teatro, moda ruim... tá, essa
última não. Ele era um semideus, como eu e você até TCHARAM! Vinho
deve ser bom, já que isso rendeu pra ele um cargo de deus. Mas eu preciso
avisar, não beba se for menor de idade. Sério. Ele poderia ter inventado
a pizza ou macarrão, assim eu não precisaria avisar nada. Pizza,
com certeza quem inventou também está no Olimpo... Bom, eu
queria muito um lugar ao lado do meu pai. Eu só não sabia o que
fazer. Todas as coisas boas, principalmente as de comer e beber, já tinham
sido inventadas. Boatos que quem criou a coca cola era meu meio
irmão – a Pepsi não, deve ter sido algum filho de Ares, eles são
estranhos – e lá estava meu pai bebendo coca todo feliz. Entenda, eu queria
muito chamar a atenção do meu pai. E eu também não tinha vivido tanto
quanto agora. Portanto seja compreensivo com o que eu fiz em
seguida. Eu fugi do acampamento.
Até que foi bem fácil. Devo ter tido
mais problemas para entrar no acampamento do que pra sair dele. Dei um perdido no
pessoal que estava comigo e escapei. Eu realmente não sei o que eu
queria lá fora, além de me provar capaz. Andei um pouco pelo
cerrado. Tinha algo nas árvores retorcidas que me fazia bem. Achei um
pequeno riacho e fui seguindo o curso, quando começou a chover. Corri e entrei
em uma espécie de gruta perto da margem do rio. Como era bem possível
ter uma jaguatirica para o fundo, entocada, eu fiquei bem na beiradinha apenas
me protegendo da chuva. Coloquei a mochila no chão e fiquei observando as
gotas. Ouvi uma voz doce e suave vinda do fundo. Eu tremi dos pés à
cabeça. Ouvi uma risada melodiosa. Era a voz da minha mãe. Eu simplesmente
não sabia se era possível, apesar de tudo. Afinal de contas eu era filha de um
deus, monstros existiam e teve até um cara que conseguiu enganar a morte
uma vez... seria possível minha mãe estar ali, de alguma forma?
- Alexis, minha filha, é você? Eu estava tão
preocupada. Venha até aqui – disse a voz da minha mãe. E eu
fui. Comecei a andar para o fundo da caverna tentando adaptar minha
visão para a penumbra. Tudo que eu queria era ver minha mãe mais uma
vez. Andei e observei reflexos de luz na água que formava poças no chão. A
chuva lá fora devia ter dado lugar para o Sol. Enquanto andava, ouvia a voz
da minha mãe, cada vez mais perto. Foi quando uma massa gigante apareceu
na minha frente e, com uma pancada, me atirou contra a parede. Caí feio e
tentei levantar enquanto a criatura se aproximava. Ao chegar mais
perto consegui enxergar melhor. Era um ciclope.
- Você é bem burrinha, né? Agora vai virar meu
jantar.
Ele estava pronto para me esmagar,
quando eu me lembrei da espada que ainda estava comigo e tirei da
bainha. Tentei me concentrar e desviei do primeiro golpe. Ataquei com a
espada na lateral da perna dele, mas não fez nem cócegas. Ele,
enorme, achou que conseguiria pisar em mim. Ou me chutar. Eu tive
bastante trabalho em desviar duas, três vezes, e ele me acertou na barriga.
Perdi todo o fôlego e caí no chão espatifando água. Sabia que não podia ficar
lá, eu precisava ir para fora daquela gruta de alguma forma. Ainda sem respirar
direito, levantei e tentei avançar para fora, mas ele bloqueava minha
saída. Tentava me agarrar e, provavelmente, me desmembrar. Mas eu
desviava e atacava.
Consegui arranhar a mão e o braço dele
umas duas vezes, mas estava muito difícil para mim. Foi quando ele me
agarrou pela cintura com uma mão e começou a me tirar do chão. Ele
apertava muito forte. Espetei a espada no dedão dele e, com um grito, ele
me soltou. Caí no chão com um baque torcendo o pé. Mesmo mancando,
tentei me manter em movimento. Tudo doía, até para respirar. Mas eu não podia
desistir. Tentei correr e passar por debaixo das pernas dele, mas ele
percebeu o movimento e me chutou mais uma vez enquanto ria. A pancada
junto com a queda abriu um rasgo no meu braço esquerdo. Meu
sangue começou a empapar minha blusa. O ciclope inspirou profundamente e disse:
- Huuuum, cheiro de semideus. Meu favorito!
Eu não sabia mais o que
fazer. Estava chegando cada vez mais para o fundo da caverna. Meus ataques
estavam perdendo a força. A dor tinha cada vez mais lugar. Foi quando eu
ouvi uma voz.
- Ei, seu bocó! Tem algum animal morto aqui ou
esse cheiro é seu mesmo?
Era meu irmão, Arius, gritando enquanto jogava
pedras no Ciclope para chamar a atenção. Funcionou, o monstro virou
lentamente e disse:
- Opa, mais comida!
E atacou. Aproveitei a distração para
correr pela lateral e ficar ao lado de Arius. Minhas energias
pareciam renovadas, uma nova carga de adrenalina passava pelo meu corpo. Meu irmão
atacou o Ciclope com sua espada e defendia com um escudo. Acompanhei e
comecei a atacar também. O ciclope chutava, tentava agarrar, gritava.
Conseguimos fazer três cortes na perna dele, quando ele começou a arrancar
pedras enormes do teto da caverna para jogar em nós. Tentávamos desviar o
melhor possível, mas éramos atingidos por pedras menores que
escapavam. Foi quando eu vi um galho enorme no chão. Parecia um cipó,
mas quando eu peguei, era duro.
E então eu fiz a coisa mais idiota da
minha vida. Me distanciei um pouco e corri. Como se minha vida dependesse
daquilo (e talvez dependesse), peguei impulso, subi nas pedras enormes que o
Ciclope havia jogado até a maior delas e me lancei para
cima dele com aquele galho na mão. Acertei bem no olho, mas eu ainda
estava segurando o galho então fiquei pendurada. O ciclope, ainda de
pé, gritava e balançava as mãos ao redor do rosto. Coloquei um
pé na testa dele e puxei o galho. Fiz força e de
repente estava caindo e batendo no chão. Novamente o ar fugiu dos meus pulmões
e eu estava coberta por uma gosma esquisita. Quando vi, estava segurando o
galho com o olho do ciclope espetado na outra ponta. O monstro agora
cambaleante estava urrando de dor, cego, sem saber o que fazer.
Então vi Arius partir para
cima dele, levantei e fui junto. Como não enxergava mais, o ciclope estava
desesperado girando a agitando os braços, enquanto gritava. Meu irmão e eu
atacamos de novo e de novo. Estava mais fácil, mas mesmo assim ainda deu uma
canseira. Já estava anoitecendo quando conseguimos, enfim, matar o
monstro. Mancando, catei minha mochila e olhei ao redor. O olho
do ciclope ainda estava lá espetado. Peguei o
galho enquanto Arius ria.
- Maninha – disse ele – Você é doida. Que você
estava fazendo aqui fora?
- Olha, acho que a questão é como você me encontrou
– respondi.
- Ah, hoje de tarde tocou o aviso de que havia
um monstro rondando o acampamento e todos os conselheiros dos chalés
deveriam sair para fazer ronda. Conselheiro do chalé – ele apontou para si
mesmo – irmã mais nova que só faz besteira – ele apontou para mim.
Ri um pouco, mas estava doendo
muito. Começamos a voltar para o acampamento. Até que eu estava me
sentindo bem, ali. Era quase como ter uma família. Andamos alguns minutos em
silêncio quando ouvimos um uivo. Instintivamente, Arius colocou
o braço na minha frente. Eu deixei, já que eu estava moída, com o pé
torcido, ferida aberta no braço, que ainda sangrava um pouco, e doía para
respirar – isso sem contar o olho enorme que eu estava carregando. Mais
um uivo. Começamos a andar com mais cautela, até que quando estávamos chegando
perto do acampamento um vulto enorme passa por nós. Era um cão infernal.
Preto, peludo, olhos vermelhos e muita
afeição por gente morta. Ou matar gente viva, sei lá. Ele passou
correndo para um lado e a gente disparou a correr para o outro, tentando chegar
ao acampamento. Correr como dava, já que nós dois estávamos meio
avariados. Alguns metros depois, o cão apareceu de novo. Comecei a odiar essa
história de brotar na sombra, já que ele apareceu bem na nossa frente.
Paramos de correr e puxamos as espadas, consegui largar todo o resto no
chão. O cão gigante rosnou mostrando os dentes. E atacou pulando em cima da
gente. Rolamos cada um para um lado e desviamos das garras enormes. Ele se virou
para Arius e quando eu pensei em atacar o cão, uma flecha prateada
perfurou seu dorso. Seguida de uma segunda na cabeça e uma terceira no
peito. E apareceram várias garotas de calça camuflada e camisa branca, com
arcos. Elas seguiram atirando. Eu estava tão aliviada que não ia morrer que a
minha reação foi sentar no chão e rir enquanto o cão virava pó. Uma garota
pequena de pele morena e cabelo escuro, bem bonita, chegou perto de mim me
olhando estranho.
- Você tá bem? – Ela perguntou devagar. Quando um
Carcará gigante pousou no braço dela e me olhou com desaprovação. Eu só sabia
rir.
Chegou outra garota, uma
ruivinha de franja, e me ajudou a levantar. Peguei minhas coisas,
guardei a espada na bainha e as acompanhei. Elas estavam indo para o
acampamento meio sangue. Olhei para trás e vi meu irmão andar meio distante
delas. Quando me viu olhando, ele sorriu meio animado e levantou um
polegar para mim. No caminho, elas perguntaram o que era aquilo, e eu
disse que era um olho de ciclope que meu irmão e eu havíamos acabado de matar.
Elas me explicaram o que era a caçada, semideusas a serviço de Lady Ártemis.
Chegamos ao acampamento. Foi uma
loucura. Lembro-me de ser cercada por vários campistas tentando ver o
pequeno souvenir (olho gigante de ciclope), Quíron me dando bronca
por ter saído sem permissão, alguma coisa a ver com lavar banheiros por um mês
como punição... Mas o pior foi quando chegou um sátiro e disse tremendo
que Dionísio queria me ver. Respirei fundo, e marchei até o
escritório dele. A raiva estava voltando a fazer meu sangue
borbulhar. Respirei fundo, abri a porta e entrei. Meu pai estava sentado
em sua cadeira e me olhou duramente.
- Oi, pai! – Eu disse na cara de pau.
- Estou decepcionado com você. Saiu do
acampamento sem permissão, colocou a sua vida em risco – no meio da frase,
joguei o olho na mesa dele – isso aqui é... um olho de ciclope?
- Sim, Arius e eu o matamos. Eu arranquei
o olho antes.
- Estou impressionado. Decepcionado com sua
insensatez, mas impressionado. Ele devia ser grande. Mesmo assim, você desobedeceu
ao regulamento. Eu não estou feliz com você.
- Eu também não estou feliz contigo – falei numa
voz baixa – agora vejo que vai ser difícil ter sua aprovação. Sabe de
uma coisa? – aumentei o tom de voz e ri um pouco – eu acho que sei o que quero
fazer agora.
- O quê? Lavar os banheiros do acampamento por um
ano?
- Não, queridinho. Eu vou entrar para a
caçada. Desse jeito eu vou conseguir passar a
eternidade INTEIRA te dando desgosto.
Dionísio engasgou com a Coca-Cola que
estava tomando e começou a rir. Muito. Eu comecei a rir também. E me virei para
a porta.
- Não esquece seu olho, filha.
- Ah, papaizinho – sim, foi bem irônico – isso é um
presente pra você.
E saí de lá ainda ouvindo as
gargalhadas do meu pai. Caminhei, ou melhor, manquei direto para o chalé 8
onde as caçadoras estavam do lado de fora sentadas conversando e limpando suas
armas. Fiquei ao lado de uma garota ruiva de cabelos compridos. Vi que a
tiara dela era diferente, então decidi falar com ela.
- Com licença, quero entrar para a caçada.
Ela me olhou com os olhos grandes e
abriu um sorriso luminoso. E começou a falar com as outras meninas.
Eu percebi que ela meio que soltava glitter enquanto se mexia,
algo assim. Então eu me tornei Arktoi e comecei meu treinamento. Eu
tive chance de falar com meu irmão, Arius. Agradeci pela ajuda e
contei sobre a caçada. Ele ficou feliz por mim, me deu um abraço e
disse que não importava. A gente sempre seria irmão mesmo não tendo
tanto contato. Ah, meu pé sarou eventualmente e o braço também, só fiquei
com uma cicatriz. Uma de muitas.
"Não compare o
palco dos outros com os seus bastidores" Desconhecido
A melhor historia que já li, amei. <3
ResponderExcluirTexto muito bem escrito e história bem empolgante! Que orgulho. ❤
ResponderExcluirCaracas, que interessante.
ResponderExcluirMelhor parte é a da Pepsi, concordo. Ainda mais Pepsi Twist. Hahaha.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirGostei de mais dessa história, parabéns KKKKKKKKK
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